Tentando aproximar a Ásia da América do Sul e vice-versa

Poesia Descortina Mundo Que Nos Aliena

2 de março de 2011
Por: Naomi Doy | Seção: Livros e Filmes | Tags: , ,

Uma idosa que se propõe a escrever poesia. Que tema mais prosaico para se fazer filme. Entretanto, o coreano Lee Chang-dong conta uma história instigante e imprevisível, de atualíssima realidade. Sem impor lição moral, num filme imbuído de muita sabedoria e moral, ele nos faz acompanhar com empatia uma delicada senhora de 66 anos, Yang Mija (atriz Yoon Jeong-hee), que luta para se manter decentemente, a ela e ao neto adolescente, Wook (Lee David). Não contando, aparentemente, com ajuda da mãe dele que vive e trabalha em outra cidade, Mija cuida de idoso incapacitado para complementar pensão que recebe do governo. Com pequenos lapsos de memória, ela é diagnosticada com mal de Alzheimer em estágio inicial; quase ao mesmo tempo, se conscientiza que seu neto poderia estar envolvido no caso de menina que se suicidara, atirando-se de ponte no rio da pequena cidade; ela vinha sofrendo contínuo e atroz bullying por parte de seis rapazes, colegas da mesma classe.

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Yoon Jeong-hee em cenas do filme

No curso de poesia, que Mija buscara para dar algum sentido em sua vida, seu professor diz que ela precisa aprender a ver e observar o seu redor com mais atenção. Sem querer, a vida ao seu redor lhe ensina a mesma lição. Na sua aparente fragilidade e alienação, ela é absorvida pelo turbilhão de angústia e ansiedade provocado pelo mundo que a cerca e ao qual ela sempre se submetera solícita: o sofrimento pelo qual deve ter passado a menina morta; a dor da mãe da menina; a confusa mistura de raiva, culpa e remorso de Mija pelo ato insensato do neto; o machismo insensível dos pais dos outros garotos, pragmáticos empresários da cidade: com a conivência da direção da escola, eles levam a termo acordo monetário com os pais da menina, camponeses humildes, para abafar o caso – sem sequer ouvir a opinião de Mija. Como se o monstruoso fato fosse mera transação comercial a ser fechada com alguns milhões de wons.

Vaidosa, Mija gosta de andar arrumada. Vestida com roupas meio fora de moda, saias e blusas diáfanas de filó e renda com bordados e apliques de crochê, echarpes coloridos, chapeuzinhos brancos e bolsa de palha – nos remete a criatura gentil e prestativa que ama flores, pássaros e gente. No entanto, nos apercebemos como o mundo lhe impõe isolamento e solidão: com a filha ao celular, não falam mais do que trivialidades; o neto, a quem ela satisfaz todos os caprichos, lhe responde com silêncio egoísta de eterno mau-humor; vizinhos a quem ela dirige palavras de simpatia, a ignoram com apatia; colegas do curso de poesia, mais jovens do que ela, a tratam apenas com educada condescendência; do idoso em reabilitação que Mija cuida já há algum tempo, só recebe sarcasmos em troca, assim como da nora dela, que mal ouve o que Mija tem a relatar; médicos do centro de saúde não lhe dão devido apoio nem atenção que uma idosa, só e desacompanhada, mereceria – retrato de uma medicina apressada e desumanizada, mais focada em desafogar salas de espera.

Quando diálogos deixam de fazer parte do hábito cotidiano, toda tentativa para quebrar a incomunicabilidade volta em forma de censuras e ressentimentos, em qualquer relacionamento: conjugal, de pais e filhos, entre amigos. Mas qual fera ferida, Mija consegue enfim enxergar a realidade (que é dura e nada poética), e decide virar o jogo, dizer “não” a toda uma vida de sujeição e passividade. Ela vai resolver as coisas a seu modo, e quem somos nós para recriminá-la?

Lee Chang-dong nos faz ponderar que esclerosada e alienada está não a delicada e afável Yang Mija, mas sim a sociedade à sua volta, o sistema médico e educacional, a falta de compaixão e comunicação sincera e calorosa entre os seres humanos: na Coreia, no Japão, na China, e, quer saber?- até nestas bandas abaixo da linha do Equador.



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